Tuesday, October 10, 2006

A fadiga do poderio militar americano

Vigílio Arraes


A efeméride dos cinco anos do atentado terrorista de 11 de setembro a Nova York ocasiona a reflexão de que a reação adotada pelos Estados Unidos frustrou-se celeremente. No entanto, falta aos formuladores de sua política externa estro para delinear um modelo substituto ao vigente, de cunho intransigentemente bélico, e, ao mesmo tempo, carecem seus executores de tirocínio suficiente para avaliar o desgaste no dia-a-dia das tentativas de
aplicação integral de uma política eminentemente militar.

Naturalmente, a subscrição da opção militar como instrumento de política internacional não advém do governo Bush - em sua origem, remonta ao final do século XIX, quando da Guerra Hispano-Americana -, nem se realça com ele - na gestão Clinton, modificou-se a definição multissecular do conceito de soberania, ao proclamar-se a possibilidade de invadir e ocupar um país desrespeitador de direitos humanos.

No caso, a avaliação do comportamento inadequado não seria efetivada pela Organização das Nações Unidas (ONU), nem por um organismo regional, porém por um grupo de potências irmanadas momentaneamente e lideradas ou influenciadas pelos Estados Unidos que, desta forma, seriam polícia, promotoria e judiciário. Contudo, ao exercerem três funções simultaneamente em diversos lugares do globo, o resultado é desastroso:

Uma das conseqüências de tal postura é a desconsideração do teor das Convenções de Genebra, ao firmar-se um presídio em Guantánamo publicamente, mais vários centros de detenção em locais não revelados pela CIA, fora do solo estadunidense, a fim de que o Judiciário não possa manifestar-se; assim, há mortes neles mal-investigadas, com mais de 500 servidores públicos norte-americanos suspeitos de participação em atos de transgressão à legislação pertinente aos direitos humanos.

No final do século passado, os Estados Unidos tornaram-se, no dizer do presidente Clinton, o 'país indispensável'. Bush leva isto mais adiante, ao propor ao mundo a visão dicotômica de apoio ou oposição aos norte-americanos. Assim, haveria um jogo de soma zero no cenário internacional, ou seja, se um ganhasse, outro simultaneamente perderia. Destarte, a imposição sobrepujaria a cooperação, ainda que desencadeasse efeitos involuntários negativos como o presente sistema prisional.

Aparentemente, após o êxito inicial no Afeganistão, a tática estaria certa tanto aos olhos do Departamento de Estado como do Departamento de Defesa. Contudo, o balanço provisório não permite mais otimismo algum. O esteio militar do governo americano não se vincula a organismos internacionais, à exceção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ou grupos, como o próprio G-8, mas ao âmbito interno, ao manter minimamente acesa a 'guerra ao terrorismo', utilizada como justificativa para futuros embates - Irã ou Síria -, mesmo diante da fadiga do poderio do país.

Se o mote auxiliou a reeleição do presidente Bush, ao prometer uma nação a salvo de novos ataques, é ele atualmente o elemento de desgaste externo, ao proporcionar dezenas de milhares de mortes ao Afeganistão e Iraque, sem perspectiva alguma de concluir, mesmo no médio prazo, a transformação político-econômica de ambos os Estados. Deste modo, o embate contra o terrorismo, termo empregado genericamente pela administração norte-americana, não galvaniza o restante do mundo, à exceção da Grã-Bretanha, embora ela mesma não apresente a mesma correspondência de anos recentes.

A dificuldade estadunidense se expressa mesmo na arena militar: se mantido, de modo crescente, o posicionamento rígido em desfavor do Irã, há a possibilidade de que grupos xiitas no Iraque dificultem o fornecimento de suprimentos militares e combustíveis e de víveres às tropas anglo-americanas. Provindos do Kuait, o envio de material atravessa o sul do Iraque para chegar a Bagdá; assim, se houver maior atrito entre os dois países, seriam centenas de quilômetros em que se poderiam montar ataques de surpresa quase indefensáveis - a opção aérea contemplaria, no máximo, 10% do material, além da ampliação dos custos. Ademais, não se pode esquecer de que, para se chegar a portos kuaitianos, é necessário cruzar o estreito de Ormuz.

Haveria outras duas possibilidades, porém inviáveis no curto prazo: Turquia e Jordânia. O primeiro, cujo governo não está nem sequer disposto a enviar tropas para o sul do Afeganistão, onde se concentram 40% dos efetivos da OTAN com o fito de conter a guerrilha talibã, não sugeriria, à primeira vista, entusiasmo com esta hipótese. Desde o início da guerra, o governo turco preocupa-se sobremodo com a crescente autonomia dos curdos no norte do Iraque e com o possível espraiamento de um discurso nacionalista que poderia ultrapassar suas fronteiras.

Quanto ao segundo, o caminho a ser pavimentado atravessaria a província de Al Anbar, a maior do Iraque, que é o centro da resistência sunita, no oeste iraquiano. Embora sem grandes riquezas naturais, há um contingente de 30 mil militares das forças multinacionais. Na visão do próprio governo americano, é lá que floresce a Al-Qaeda, o mais bem estruturado dos grupos combatentes. Poucas cidades da região integram-se ao governo central - Faluja é uma delas.

Por fim, a despeito do visível fracasso, o Partido Republicano do presidente Bush não se inclina a refletir sobre a ação adotada de modo mais duradouro. A influência intelectual dos neoconservadores ainda é significativa. Desta maneira, o desacerto da política externa norte-americana será debatido de forma ampla apenas na campanha presidencial em 2008.



Virgílio Arraes é professor do instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília – UnB.