“Este é um fenômeno que se tornou comum entre muitas das forças multinacionais. Nenhum respeito pelos cidadãos, destruindo carros de civis e matando por um simples palpite. É inaceitável”.
Jawad al-Maliki, primeiro-ministro do Iraque.
A revelação recente do assassinato por militares dos Estados Unidos de civis inocentes em Hadhita desencadeou uma série de denúncias de violações dos direitos humanos, reforçadas por abundantes testemunhas e fotos. O que levou a ONG “Human Rights Watch” a afirmar que os abusos de Abu Ghraib foram apenas a ponta do iceberg.
Em Haditha, fuzileiros navais, vingando a morte de um dos seus num atentado a bomba, invadiu casas das famílias das vizinhanças matando 24 pessoas, inclusive um menino de 4 anos e um velho aleijado. Seus superiores procuraram isentar os envolvidos de culpa. Só depois que a Time publicou a história, o Pentágono resolveu investigar o caso.
Nos combates contra os insurgentes de Haditha, os militares americanos puniram a cidade inteira, cortando a eletricidade e a água, atacando o hospital e até matando um doente em seu próprio leito.
Incidente semelhante ocorreu em Izahaqi. Ao atacar uma casa suspeita, tropas americanas mataram 11 civis. Cinco deles eram crianças com menos de 5 anos. Nenhum tinha qualquer vínculo com a insurgência. A polícia local garantiu, com base em fotos e testemunhos, que as vítimas foram executadas. Mas o Pentágono considerou tudo “danos colaterais” a uma ação militar legal, liberando os soldados envolvidos. Foi tão chocante que até o dócil primeiro-ministro iraquiano protestou, exigindo desculpas e compensações às famílias das vítimas.
Novas acusações de crimes de guerra se seguiram, justificando a frase de Omar al-Juburi, porta-voz do maior partido sunita: “As forças dos Estados Unidos violaram os direitos humanos em todo o Iraque e muitas vezes”. Somente em maio, ele refere, 29 civis inocentes foram mortos nas cidades de Latifiyah e Yusifiyah durante ataques aéreos contra casas e automóveis presumivelmente suspeitos.
O governo Bush tem procurado esconder estes fatos. Quando se tornam públicos, ou culpa algumas raras “maçãs podres”, que, afinal, existem em qualquer parte, ou a falta de treinamento adequado.
No caso de Abu Ghraib, usou-se a teoria das maçãs podres. Mas, quando elas começaram a se tornar abundantes, foi necessário buscar outra. Que foi alegada em Haditha. Falou-se em “treinamento inadequado”, o que seria atribuir às Forças Armadas americanas uma espécie de “culpa administrativa”, algo muito mais leve... Se falta o treinamento, raciocinou o Pentágono, treinar nossos rapazes é a solução, anunciada com destaque pelo governo Bush.
No entanto, para alguns analistas, o treinamento é que está errado. Desde seu recrutamento, os soldados são ensinados que os Estados Unidos têm o direito (divino, segundo Bush) de usar de força mortal em qualquer parte do mundo onde o governo julgar os interesses pátrios ameaçados. Por isso, invadir o Iraque era necessário, não importa a oposição da ONU e a violação do direito internacional. A maioria dos soldados, acreditando no seu presidente, acha que guerreia um povo envolvido no bombardeio das torres gêmeas – conforme pesquisas. Como corolário, esse povo merece receber em troca a mesma brutalidade que usou no 11 de setembro.
Estas lições foram aplicadas na batalha de Falujah, há um ano atrás, da qual os mesmos fuzileiros de Haditha participaram.
Em Falujah, cidade sunita, seguranças americanos foram cruelmente assassinados por terroristas. A foto dos seus cadáveres desonrados, com o aplauso de pessoas não identificadas, chocou o mundo.
Como represália, o Pentágono lançou contra Falujah um poderoso ataque, incluindo tanques, aviões e até bombas químicas. Foi uma das mais selvagens destruições de uma cidade desde a 2ª. Guerra Mundial. Depois de oito semanas de bombardeios sem pausas, foram cortados a água, a eletricidade e o suprimento de alimentos da cidade. Dois terços da população fugiram. Entre os que ficaram, quem tinha de 15 a 60 anos era considerado “terrorista” e alvejado ao sair de casa. Assim morreram 6.000 pessoas, a maioria civis, pois os terroristas, logo no início, haviam fugido.
Foi um caso de punição coletiva, uma lição da Casa Branca que os fuzileiros aprenderam em Falujah e aplicaram em Haditha.
Outra lição ensinada desde o início da ocupação: em caso de mera suspeita, atirar sem vacilações. Foi assim que soldados americanos alvejaram o carro da jornalista italiana Giuliana Sgrena, causando a morte de um segurança.
A conseqüência desta postura é que, segundo os cálculos da polícia local, a cada dois dias, um civil iraquiano inocente é morto pelo exército da coalizão.
Depois das atrocidades de Haditha, o governo americano prometeu realizar sérios programas de treinamento dos seus soldados, deixando implícitas preocupações com direitos humanos. Mas, em 5 de junho, o Los Angeles Times revelou que o novo manual de interrogatórios das forças armadas, ao discriminar as práticas ilegais, omite o “tratamento humilhante e degradante”. Coisas como obrigar os suspeitos a urinarem uns nos outros, a relações sexuais entre si e outras aberrações comuns em Abu Ghraib. Segundo um oficial informou ao jornal: “A idéia geral é que eles precisam de maior flexibilidade para aplicar técnicas cruéis se necessidades militares o exigirem”.
Enquanto os americanos procuram negar ou minimizar as violências praticadas por seus militares, falam em raras exceções ou em falta de treinamentos, os próprios líderes do regime amigo do Iraque protestam.
O primeiro-ministro Jawad al-Maliki exige que passem para seu governo os inquéritos da matança de Haditha, numa demonstração de falta de confiança nas autoridades da coalizão. O vice-presidente Hashimi pede que a ONU se junte às investigações dos crescentes “erros sangrentos” dos soldados americanos.
A esse respeito, disse Sharif Nashashibi da ONG “Arab Media Watch”: “Cada vez que algo assim (um atentado) acontece, você ouve oficiais americanos e ingleses falarem em algumas ‘maçãs podres’. E, realmente, a sensação é que a árvore inteira está podre”.
Luiz Eça é jornalista.