Estranha sensação... Algumas semanas atrás capturei por acaso, via internet, o sinal da teleSur (www.telesurtv.net), uma emissora de televisão venezuelana que tem como meta integrar a América Latina por meio da linguagem audiovisual e jornalística. A sensação foi estranha porque logo nos primeiros minutos era como se eu estivesse vendo televisão pela primeira vez em minha vida! E desde ali, também pela primeira vez, tornei-me assíduo espectador de TV, ou melhor, de teleSur.
Em verdade, desde 1964, quando eu tinha 14 anos de idade, a televisão sempre me pareceu algo inteiramente inútil e dispensável. Recordo-me agora de uma só vez em que me senti lucrando por estar diante de um aparelho de TV, que não fosse para assistir a alguma obra cinematográfica do meu agrado. Foi durante alguns meses, ao final da década de 1970, quando Glauber Rocha logrou colocar no ar um programa semanal de televisão de fato televisível e inteligente: o Abertura. Para mim, foi esse o único programa periódico de TV produzido pela mídia brasileira, desde 1964, que merece ser conservado - pelo menos em minha memória.
Como aquela experiência foi de poucos meses e restrita a um único programa - e já se vão quase trinta anos que me aconteceu - com o tempo tornei-me cético e passei a crer que seria impossível fazer algo útil em audiovisual televisivo, não por questões relativas à linguagem em si, mas pelo poder que agrega aos interesses oligopólicos e plutocráticos que o dominam como instrumento de comunicação de massa, aos quais se tornara totalmente submetido. Deste modo, no que me diz respeito, o aparelho de TV é um artefato útil tão somente para visionar obras produzidas para cinema, em sessões caseiras, apesar das perdas inevitáveis da tela em miniatura e da qualidade sonora.
Porém, com a recém-descoberta da teleSur, aquela estranha sensação inicial provocou-me, em poucas semanas, uma mudança radical nas minhas concepções de realizador e estudioso do audiovisual. A teleSur demonstrou que é possível, sim, fazer algo útil, aliás, muito útil e, talvez, poderosamente útil, através daquilo que até hoje tem sido, para mim, um perverso instrumento de alienação, desintegração e desinformação dos povos e das pessoas. E, para que o leitor não pense que isto possa ser uma recaída no otimismo por parte de um cético, devo dizer porque acredito na revolução que a teleSur nos promete.
Linguagem
Por sorte minha, um dos primeiros programas que vi na teleSur foi um excelente documentário sobre o cineasta venezuelano Clemente de la Cerda (1935 -1984), do qual infelizmente nunca vi um filme e nem tinha ouvido falar - o que já dá uma dimensão da ignorância em que me vinha mantendo sobre nossos vizinhos latino-americanos. Clemente tinha uma postura de inquietação intelectual muito semelhante à de Glauber Rocha. Por sinal, a semelhança entre os dois me pareceu até mesmo física. Mas como cineasta, pelos trechos que foram exibidos no documentário, achei-o mais próximo de Rogério Sganzerla. Como Glauber e Rogério, Clemente morreu cedo mas deixou-nos um legado de obras definitivas para cultura de seu país e para a cinematografia universal.
Outra semelhança dele com os dois cineastas brasileiros seus contemporâneos é que ele escrevia, e escrevia muito bem. A diferença é que Clemente teve uma boa experiência em televisão nas décadas de 1940-50, antes de se assumir como cineasta de vanguarda nos anos 1960-70. Este dado é importante porque possibilitou a ele uma vivência de dentro do processo de produção televisiva - ainda enquanto ela nascia no território latino-americano - que a sua inteligência privilegiada soube transformar em análises críticas de espantosa acuidade.
O documentário exibe uma página de um de seus livros, a qual podia ser lida em vídeo pelo espectador e foi também lida quase toda em áudio (locução em off) - num plano muitíssimo ousado para televisão; um contundente grifo de mensagem. Nesse fragmento de texto o cineasta denuncia a gradativa usurpação, pelo veículo televisivo, dos papéis subjetivos da narrativa audiovisual e da câmera pela interposição do narrador (ou repórter) e do veículo (instituição) entre o conteúdo da mensagem e a inteligência do espectador.
Não tenho as palavras exatas de Clemente, não encontrei seus livros em lugar algum, mas, pelo que entendi, a conclusão de seu texto é a de que, nessa usurpação de linguagem, o veículo subtrai aos protagonistas a função de transmitir a informação para se apresentar ele próprio, e ilegitimamente, como o portador da "verdade", a qual manipula a seu critério. Não é à toa que a direção do documentário editou o inusitado plano-texto numa produção para a teleSur. Não será preciso mais de cinco minutos diante dela para perceber que seus diretores são discípulos das idéias de Clemente, em especial, quanto à essa sacada genial do cineasta. Nessa questão importantíssima, a teleSur resgata integralmente para a linguagem televisiva - e com uma qualidade fantástica - justamente os papéis subjetivos da câmera e da narrativa audiovisual, colocando de volta ao primeiro plano os protagonistas da informação - e portanto a verdade integral dela - diretamente em contato com o espectador.
E com uma competência extraordinária em todos os níveis de edição. Por tal postulação de linguagem, na teleSur todos os elementos componentes e construtores do audiovisual estão coordenados sob um rigor de direção e de produção que eu jamais observara em qualquer outro canal de televisão, e não me refiro apenas aos brasileiros e latino-americanos. E isto é só o começo.
Qualidade de edição
Nenhuma emissora de TV que eu tenha visto, inclusive algumas que se auto-proclamam "a melhor do mundo", chega aos pés da teleSur em qualidade de edição audiovisual "24 horas por dia". A começar pela câmera, cujos posicionamentos e movimentos são dirigidos cuidadosamente para o melhor enquadramento fotográfico do ponto de vista artístico e não comercial. Prioriza-se a assimetria da composição, as tensões visuais inquietantes, os plongés, os movimentos perturbadores e provocadores da inteligência do espectador, em lugar dos convencionais enquadramentos centralizados, dos planos médios banais e dos movimentos óbvios e hipnóticos que se tornaram quase obrigatórios às câmeras de TVs do mundo inteiro.
Em estúdio, nota-se a preocupação da teleSur com a qualidade cenográfica e de iluminação, sempre discretas, de bom gosto e artisticamente bem compostas, em lugar dos exageros cenográficos-luminosos que nos são estertorados em extremos de delírios bregas nas TVs conhecidas. O mesmo se pode dizer em relação à escolha dos profissionais em cena e aos cuidados de seus vestuários, maquiagens e cabelos. Ainda no visual, há a se 3 destacar a qualidade gráfica e tipográfica das titulagens, legendas e gráficos da teleSur, sempre claros, bem compostos, legíveis e respeitando as boas regras de proporção e composição gráfica na relação imagem-textos do quadro exibido, e no uso de cores nobres e bem combinadas. Tudo isto vem associado a um excelente trabalho de computação gráfica, animações e efeitos visuais utilizados com parcimônia, adequação e elaboração criativa, em muitos casos, primorosa.
A direção de arte da teleSur sabe muito bem o que fazer e como fazer. Consegue uma sofisticação e um requinte de imagem, ao par de um invulgar despojamento e limpeza de acabamento, que resultam numa qualidade de apresentação visual de alto nível profissional e alcança o patamar das mais bem cuidadas realizações cinematográficas. Iguais cuidados são tidos com o áudio. A trilha sonora da teleSur é brilhante em qualidade e harmonia, das vinhetas aos conteúdos editados. Dispondo dos mais variados recursos acústicos e eletrônicos, a direção musical da teleSur vale-se de originais emas melódicos, populares e eruditos, e do uso criativo e adequado de efeitos sonoros a fim de sustentar e enriquecer as imagens, sublinhando e enfatizando as locuções e narrações de maneira ao mesmo tempo suave e marcante. Descartam-se, na teleSur, os estardalhaços cacofônicos e autistas verificados na poluição sonora da maioria das grandes redes de televisão.
A locução jornalística dos âncoras, moderadores e repórteres da teleSur é direta e firme, quase neutra, mas sem perda da sensibilidade dramática, e completamente desvencilhada das afetações vulgares e maneirismos imbecilizantes hoje verificados com cada vez mais irritante frequência no jornalismo televisivo das grandes redes. Esse domínio das duas pistas da linguagem (áudio e vídeo) não será menor, evidentemente, na etapa final e mais importante da edição, que é a montagem. Nela, sente-se que a teleSur se cuida para não avançar demais em relação às outras mídias televisivas que estragaram o gosto do público e viciaram o espectador na chatice do discurso linear e na obviedade sequencial. Ela então se cuida para ser aceita como boa. Só que é boa mesmo!
Ainda assim, a montagem da teleSur - que prima pela simplicidade e pelo despojamento - é rica em ritmos e timbres audiovisuais e vai aos poucos introduzindo elementos novos e avançados de linguagem, como nas sequências de planos e contra-planos jornalísticos, de entrevistas e mesas-redondas, montando-os muito mais dialéticos e criativos do que nas outras TVs. Eu não diria que a teleSur faz uma montagem vanguardista como resultado final, se comparada à liberdade de edição cinematográfica, mas que ela pratica uma montagem com diversidade e movimentação muito acima da média e para além, em ousadia, de qualquer outra edição televisiva que conheço.
As grandes redes de televisão buscam moldar seus públicos num perfil de espectador alienado, egoísta, gregário e globalizado. Algumas chegam mesmo a querê-lo estúpido e até boçal. Em geral, tratam o espectador como um idiota ou um débil mental, e se acham no direito de se intrometer na vida dele de maneira arrogante e grosseira. Muito ao contrário, a teleSur se quer moldada pelo espectador consciente, preocupado com as questões sociais, independente e, antes de tudo, latino-americano. A teleSur não só respeita a inteligência do espectador; ela o trata bem, muito bem, com distinção, consideração e gentileza. E que não se pense ser a teleSur, elitista. Ela é uma emissora de TV muito popular. Só as elites ignorantes acreditam que o povão gosta de lixo; quem gosta de lixo são elas, as elites.
Na verdade, a televisão que fazem são para elas mesmas - e a empurram goela abaixo dos 4 povos do mundo à força de métodos (anestésicos) audiovisuais que vêm sendo desenvolvidos desde os sórdidos inícios da propaganda comercial e nazista.
"A massa ainda há de comer o biscoito fino que eu fabrico", dizia o escritor Oswald de Andrade. A teleSur é a realização mais ampla e mais concreta que conheço desse prognóstico oswaldiano.
Conteúdo
Tudo o que acima vem exposto é colocado a serviço de um conteúdo pautado em critérios, agora sim, da maior vanguarda editorial de comunicação de massa que já se viu, seja em mídia impressa ou eletrônica. A teleSur tem por cenário a América Latina toda, do México e Caribe ao extremo Cone Sul, e tem por protagonista principal o povo latino-americano. Assim, ela se coloca a serviço de suas nações e não de seus estados e governantes. Sua grade é desenhada a serviço da auto-estima, do engradecimento e da independência do seu principal protagonista e do cenário em que vive. Nela tem voz o operário, o camponês, o indígena, os explorados, as reivindicações e as lutas populares, suas desditas, suas conquistas. Dela participam os melhores artistas e pensadores de todas as expressões, eruditas e populares, desde a vanguarda contemporânea aos grandes mestres do passado.
Frequentam-na, igualmente, as mais expressivas e progressistas lideranças políticas e populares da atualidade e da história. Nessa grade não há espaço nem tempo para baixarias de mau jornalismo, nem para o banditismo e a divulgação desnecessária de seus crimes, nem para os oportunismos popularescos de auditórios, nem para enganações de pseudosentretenimentos de má qualidade e origem duvidosa, nem para perversidades audiovisuais de qualquer gênero - e muito menos para as porcariadas alienígenas enlatadas. Além disso, - oh! Glória! - não há publicidade comercial. Política, cultura, riquezas naturais, tradições, folclore, comida, energia, trabalho, artes, educação, lazer, esportes e outros temas de interesses nacionais e continentais se distribuem bem equilibrados naquela grade, suportados por camadas sólidas do melhor, mais bem preparado e mais bem equipado jornalismo televisivo que conheço. "Vamos a nos conocer" - diz um de seus belos slogans. Documentos geniais em séries como Caminantes, Nahui - El Rostro del Ecuador, Memorias del Fuego, Destino Latino-America, Estacion Submarina, se permeiam a produções de documentários culturais e periodísticos (Cultural Doc e Periodístico Doc) e a edições especiais jornalísticas como Agenda del Sur - La Revista, Mesa Redonda, Realidades e Sintesis en Latinoamericana, além de outros programas que ainda não tive a oportunidade de conhecer, compõem, junto aos grandes "Noticieros", uma movimentada grade televisiva que tem como único defeito o de tornar cada vez mais difícil o ato, para o meu caso absolutamente necessário, de desligar o aparelho (ou "desconectar" do site).
Pela primeira vez vi, em sinal de TV no Brasil, imagens tomadas em Palácios de Governo, Casas Legislativas, ruas, centros urbanos, regiões rurais, campos, desertos e florestas de países como Venezuela, Colombia, Bolívia, Equador, Peru, Paraguai, Cuba, México, Nicarágua, Haiti, para citar apenas os que foram matérias nas semanas passadas. Até então 5 só chegara aos meus olhos umas poucas imagens do tipo vindas do Uruguai, Argentina e Chile, mesmo assim em momentos que se já vão longe e me dóem recordar. Nos noticiários da teleSur é assídua a presença de políticos como Fidel Castro, Hugo Chaves, Evo Morales, Tabaré Vasques, Nestor Kirchner, Álvaro Uribe, Alejandro Toledo, e até, de vez em quando, Lula (infelizmente, parece que o Brasil é o único país latinoamericano que se mantém distante da teleSur)1. Também estão lá os líderes políticos, ministros e autoridades de todos os países latino-americanos. Atuais líderes revolucionários como Daniel Ortega, Raul Reyes (Farcs), Ollanta Umalla, Subcomandante Marcos, entre outras lideranças sindicais, estudantis e políticas de diversas origens de classe e matizes ideológicos progressitas e revolucionários também frequentam os noticiários e especiais da teleSur, ao lado de grandes líderes do passado como Che Guevara e Raul Sendic.
Além disso, a teleSur conecta-se com o resto do mundo, em coberturas exclusivas ou filtrando o suco de interesse das agências de notícias internacionais, sempre dando preferência às frentes de resistência ao imperialismo, onde estiverem, seja no Nepal, na Nigéria, em Bagdá, na Coréia do Sul, na Europa, em Teerã, ou nos próprios EUA..
Mas, como já disse, o protagonista mais importante de todos é o povão: camponeses, operários, indígenas e caboclos de todas regiões da América Latina, inclusive as mais longínquas e olvidadas, estão lá, nos ensinando as coisas de suas terras, de suas tradições, de suas culturas, de seus labores. E como são belos e falam bem, os latino-americanos! E como são belas as regiões em que vivem! Não falo de uma pseudo-beleza formal, estereotipada e cenografada pela enganação midiática. Eu me refiro à beleza verdadeira, autóctone, às vezes rude e até áspera, dos ricos rincões de humanidade que nos vêm sendo revelados pelas câmeras e microfones da teleSur. E, como postulava Clemente de la Cerda, sem a impertinência afetada de reporterizinhos medíocres se colocando, em nome de seus "veículos", entre nós, espectadores, e os protagonistas da mensagem audiovisual, quase sempre a insultar a nossa inteligência.
Cabe aqui o elogio à toda equipe da teleSur, pela garra com que encaram o trabalho que fazem e a consciência que demonstram ter da importância dele, o que nos é perfeitamente visível, seja em cena, nos bastidores ou nas instâncias administrativas e de produção. Só para fazer o leitor que nunca viu a teleSur ficar babando de inveja, vou relacionar, ao final deste texto, alguns dos programas que tive o privilégio de visionar nas poucas semanas em que me tornei espectador teleSur.
Se estivesse vivo, Oswald de Andrade iria se deliciar com a teleSur porque ela é exatamente "a voz (e a imagem) do homem do Equador" que o grande escritor previu em seus textos filosóficos "maravilhosamente bem escritos" como aquele que, quando conquistasse a sua vez de falar, iniciaria a grande revolução demarcadora do fim do velho e obsoleto patriarcado capitalista e do início de uma nova era: a do novo e revolucionário matriarcado socialista do homem natural-tecnizado, no qual a sociedade, graças ao uso social e benéfico da tecnologia, será a grande mãe dadivosa e provedora de todos os seus filhos, ou seja, a era que a Revolução Bolivariana de Hugo Chavez inaugura para o mundo. - Viva a Venezuela!
Hugo Chavez
Já que acima mencionei a inveja devo agora confessar uma que me vem tomando o espírito nestes últimos anos: a de quem vive sob o manto solar da Revolução Bolivariana capitaneada por Hugo Chavez, ou seja, a de quem vive numa pátria que tem por presidente este genial revolucionário moderno. Ter por presidente alguém que tenha lido Thomas Morus e Simon Bolivar e é capaz de citar numa só frase, de improviso e com pertinência, Jean-Paul Sartre e Benedicto XVI (A Revolução do Amor), como pude ver pela teleSur na chegada de Chavez em Viena para uma reunião de cúpula internacional; ter por presidente alguém compromissado com uma história que conhece bem pelas melhores letras e que tem a coragem de liderar - com o risco da própria vida e em franco desafio aos super-poderosos poderes que nos ameaçam e nos assolam - a realização de uma obra social e cultural do porte desta que a Venezuela está realizando para si e para o mundo; ter por presidente alguém que faz o melhor investimento até hoje jamais feito com o dinheiro da energia suja do petróleo; ter por presidente alguém que está armando o povo de seu país (e dos países vizinhos) para enfrentar o invasor com todas as armas, e não somente as armas bélicas, mas, também, as armas da educação, da cultura e do saber, da igualdade social, da verdadeira democracia e da comunicação de massa (teleSur), esta última entre as mais eficazes nos tempos atuais - é o que, entre as inúmeras virtudes da República Bolivariana da Venezuela e de seu grande líder Presidente Hugo Rafael Chávez Frías, me faz confessar a inveja que nutro por todos os venezuelanos. Que, com humildade, parabenizo. Mas, "já estamos a nos conocer".
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Leio em Gilberto Vasconcelos (Nacionalismo Trabalhista Brasileiro, inédito) que Hegel identificou um conflito, naquela época em gestação, entre a América do Sul e a América do Norte. Para Hegel tal conflito seria duradouro e ele inclinou-se a crer que a América do Sul sairia, ao final, vitoriosa. Sendo contemporâneos, é provável que Hegel conhecera as idéias de Bolivar e isto pode ter influenciado o seu vaticínio, bastante arriscado já naqueles idos. Quando vejo na teleSur Hugo Chavez se referir a Evo Morales como a encarnação da profecia do aymara Tupac Katari, o qual, ao morrer esquartejado pelos espanhóis por causa de sua liderança libertária, disse que ia voltar, penso em Chavez também como a encarnação dos ideais de Bolivar - que retorna ao mundo para cumpri-los e consagrar mais uma vez a razão e a lucidez profética de dois grandes filósofos: o alemão Hegel e o brasileiro Oswald de Andrade.
Pelas informações a que tive acesso (na própria teleSur), apenas o governador Roberto Requião, do estado do Paraná, firmou convênio para repetir o sinal da teleSur em seu estado, incluindo um canal de áudio em português. Vi também, por acaso, alguns programas da teleSur, se bem que alterados, reeditados e muito prejudicados na qualidade, numa tal TV Brasil, que eu desconhecia. Informa-se nela que essa programação se restringe a horários, entre 1h e 7h, nos quais nem as grandes redes TVs conseguem sequer traço de audiência.
Além do já citado documentário sobre Clemente de la Cerda, eis alguns programas que destaco entre os que tive o privilégio de assistir pela teleSur (quase três semanas, com cerca de duas horas de audiência por dia):
- Na série Caminantes, conheci a genial escritora e filósofa Rigoberta Menchú Tum, a índia maya-quiché nicaraguense que foi Prêmio Nobel da Paz, em 1992. O discurso dessa mulher é algo de extraordinário e nos conduz ao melhor pensamento revolucionário e humanista que tive o privilégio de conhecer. A produção (mexicana) do documentário é impecável, assim como a direção, a fotografia e, acima de tudo, a extrema sensibilidade na captação de um maravilhoso depoimento dado em entrevista que a edição montou, talvez na íntegra, pontuado de forma enxuta e severa por iconografias audiovisuais pertinentes, ao ponto de excluir totalmente a participação do entrevistador, tanto na imagem como no texto publicados.
- Da série Nahui - El Rostro del Ecuador, vi três belos filmes de documentário-ficção: Mulucu Auaca, Awa e Huaorani - Los hijos del Sol. Todos são produções equatorianas do final da década de 1990 e reproduzem as lendas e mitos da criação das respectivas tribos, narradas e protagonizadas pelos próprios indígenas em suas línguas originais (legendas em castelhano) e filmadas no habitat natural onde ainda vivem. Belíssimas sequências, dignas de um mestre como Kurosawa, explorando a plasticidade da floresta úmida equatoriana, os silêncios e sons da natureza e a beleza rústica dos indígenas, suas culturas e suas sábias crenças. Só vendo.
- No excelente Agenda del Sur, destaco, entre outros, um que foi dedicado ao uso das plantas medicinais pelas tradições indígenas sul-americanas e a atual exploração de seus conhecimentos por transnacionais ávidas de registrar patentes farmacêuticas. Esse programa é sempre informação jornalística de primeira. Um outro que vi foi dedicado à comida do povo latino-americano. É o primeiro que vejo sobre o assunto que não vem nos falar de bobagens nutricionais como vitaminas, fibras, carbohidratos, dietas burguesas da moda e ecologia de butique, e nos informa com segurança sobre as questões de produção, dos trangênicos, da biomassa vegetal e das tentativas de exploração imperialista das nossas riquezas agrícolas. Nesse programa, registrei a presença bem informada de Roosevelt Franquiz, engenheiro agrônomo e diretor do Instituto de Terras da Venezuela, que muito me pareceu um Marcello Guimarães venezuelano.
- Ainda em Agenda del Sur, se não me engano, pude me deliciar com um recital de música de câmara contemporânea com composições e execução do chileno Alejandro Lavaderos e um conjunto de sopros que executa, em instrumentos tradicionais de bambu e em flautas transversas, um tão inovador quanto genial repertório de música erudita que orgulharia a qualquer nacionalidade de qualquer parte do mundo. Vi também chamadas para programas a serem levados sobre o poeta Mario Benedetti, a atriz Maria Rojo, o pintor mexicano Siqueiros, e outros sobre cineastas, escritores e artistas cujos nomes não me recordo agora, todos muito interessantes. Entre as vinhetas, a minha predileta é a da bailarina, não só pelo tratamento plástico-visual mas, principalmente, pela beleza da sua dança e da música que a acompanha. E pelo final surpreendente, que não vou contar. Outras belas vinhetas são a do pianista Chuchito Sanoja, magistral, e a de uma trupe de atrizescantoras em performances de rua. É boa também (e arriscada, quanto ao áudio) a vinheta dos noticiários. Aliás, as vinhetas da teleSur são todas boas ou muito boas. Excelentes, tanto quanto competentes, são também as criações de identidade visual da teleSur, desde o logotipo, suas animações, seus slogans, suas aplicações em tela, além das entradas e saídas dos programas da grade.
"TeleSur: Nuestro Norte es el Sur".
- Mario Drumond é jornalista e realizador audiovisual (escrito em Belo Horizonte, 16 de maio de 2006)
http://alainet.org/active/11847