Bolívia e o alicate das elites
Fábio Luís
O episódio da nacionalização dos recursos naturais na Bolívia ilustra o mecanismo como as elites estreitam a margem de manobra e inviabilizam um governo reformista no Brasil.
Como apontaram os analistas lúcidos, o decreto boliviano é uma atitude soberana, apoiada em um plebiscito nacional e um programa recentemente referendado por uma eleição. Não consiste numa ilegalidade e nem sequer numa surpresa.
Do ponto de vista brasileiro, a dependência no fornecimento de gás natural esteve, desde o início, garantida e a Petrobrás teve afetada uma porção ínfima de seus negócios, mas nunca inviabilizados.
O que se vê na Bolívia é uma medida que propõe dar maior fôlego de investimento social para um Estado com um orçamento menor do que o da Universidade de São Paulo, em um contexto de aguda pressão popular. Não é um movimento de horizonte revolucionário.
O governo Lula reagiu de maneira compreensiva, entendendo que não havia risco para a energia brasileira nem para os negócios da Petrobrás.
No entanto, a mídia nacional armou um sufocante coro de condena à pusilanimidade do presidente e ao cenário ufanista de uma nação continental, humilhada por uma tribo de vizinhos desaforados. O preconceito étnico e de classe não esteve ausente da diatribe.
Instalou-se uma situação incômoda: o Planalto, que governou para agradar estas elites, fez sempre o jogo de uma política externa soberana de fachada. Não poderia na situação optar por confrontá-las, explicando ao povo com naturalidade a sua posição. Desmistificar significa atacar sua base de apoio. Mas também não pode curvar-se à recalcitrância das elites, sob pena de ver raspado o verniz das relações internacionais que supostamente lhe diferencia do governo anterior.
O episódio serviu às elites para reafirmarem de maneira especular – ou seja, por inversão de imagem, como acontece em um espelho - as características mais salientes do seu projeto para o país.
Em primeiro lugar, inexiste espaço para a reforma. Uma política social progressista e relações externas soberanas são inaceitáveis como prática ou como exemplo. O presidente é mantido “na linha” pela vigilância impiedosa de uma imprensa recalcitrante, que não lhe dá espaço para uma coisa (reforma social, neste caso a dos outros) nem outra (aliança política regional).
Depois, não existe lugar para a “coisa pública”: a nacionalização de recursos naturais é vista como um anacronismo em uma era de Estado mínimo e livre mercado máximo.
Por fim, a sorte do povo, seja o boliviano, a quem se endereçam os recursos que se procuram, seja o brasileiro, objeto de uma política energética irresponsável desde o governo anterior, não se discute. O que se vê é um nacionalismo chauvinista, que associa a nação ideologicamente a interesses corporativos.
O alarde gerado pelos acontecimentos na Bolívia explicita o caráter antidemocrático, anti-nacional e anti-popular das elites brasileiras. Por trás da histeria veiculada pela mídia, escuta-se um suave suspiro de saudades de FHC. E a mobilização dos carros de som de campanha de Alckmin.
Fábio Luís é jornalista.
http://www.correiocidadania.com.br/ed501/fabio.htm